Na série da vez, Round 6, há muitas referências da vida coreana que acabam batidas para espectadores ocidentais
Uma delas, que é bastante central na trama, fala de um evento doloroso da história recente do país, envolvendo a indústria automobilística.
No meio da temporada, quando os participantes do jogo montam barricadas de proteção, o protagonista Seong Gi-hun tem um flashback de como sua vida começou a degringolar. Ele era funcionário de uma certa Dragon Motors e, numa greve violenta, acabou perdendo um amigo para fura-greves. E depois seu emprego, sua estabilidade, eventualmente, tudo. Nunca mais se acertou financeiramente e acabou caindo na dívida, o que o levou ao Jogo da Lula.
Batalha na fábrica
Quem é coreano notou imediatamente qual é a referência: a brutal repressão à greve da montadora Ssangyong em 2009. Não é nada sutil, aliás: Ssangyong significa “Dois dragões” em coreano. “Dragon Motors” é uma referência óbvia.
A fábrica fica em Pyeongtaek, cidade do sul da Coreia do Sul. No começo de 2009, a SAIC Motor, montadora chinesa que controlava a Ssanyong então, entrou em processo de falência. Era uma consequência da crise de 2008.
Com a falência do acionista, em maio, a Ssangyong anunciou um plano de reestruturação que envolveria demitir 2646 funcionários da planta.
Os trabalhadores, unidos pela Confederação Sindical Coreana, tentaram negociar. Sem acordo, em 14 de maio decretaram greve e ocuparam a fábrica.
A princípio, a Ssangyong tentou tirá-los com seguranças privados, mas os trabalhadores resistiram com estilingues improvisados, ferramentas, peças, até socos e pontapés.
Com uma ordem judicial, em 20 de julho, a polícia se envolveu na repressão. E veio com carga total. Usando de táticas antiterroristas e milhares de agentes, tentou forçar os trabalhadores a desocupar a fábrica com cassetetes, balas de borracha, tasers, canhões de água, e um composto lacrimogênio lançado de helicópteros e considerado cancerígeno. E isso foi só o começo.
Não é Round 6 da vida real, mas é violento
Os trabalhadores foram cercados, com suprimento de água, energia elétrico e alimentos bloqueados pela polícia. Ao mesmo tempo, helicópteros sobrevoavam a fábrica 24 horas por dia para impedir os manifestantes de dormir com seu barulho.
No dia 27, isolados no prédio da pintura de carros (pela tinta ser inflamável, acreditavam que isso evitaria a polícia de tentar invadir), os manifestantes decretaram: “Estamos fazendo nosso melhor para resolver essa disputa pelo princípio de negociação pacífica com diálogo. Porém, se esse tipo de repressão brutal, mortal, continuar, declaramos abertamente nosso desejo de lutar até a morte.”
Em 6 de agosto, após muitos feridos e desistentes, enfim chegou-se a um acordo: a empresa daria aposentadoria precoce para 52% dos trabalhadores e recontrataria 48% após um ano de licença não paga.
Imediatamente após a desocupação, 70 grevistas foram presos. Os três líderes do movimento, Han Sang-qyun, Kwon Sun-man e Kim Hyuk, permaneceriam na prisão por 4 anos.
Suicídios na sequência
Apesar do acordo, 143 trabalhadores foram demitidos imediatamente e os que tiraram licença nunca foram chamados de volta. Uma batalha legal se seguiu por 10 anos até que, em 2019, a empresa readmitiu 119 funcionários. Os outros tiveram sua reinserção adiada por “maus negócios”.
Em 2018, uma comissão da verdade concluiu que a polícia cometera violações de direitos humanos na greve. Mas nenhuma ação concreta, exceto a sugestão de um pedido de desculpas, era possível.
Manifestantes afirmam que 30 pessoas perderam a vida por conta dos eventos de 2009. A maioria desses, por suicídio, por conta da penúria da espera. Metade deles nos dois primeiros anos.