Em resposta a ofício encaminhado por líder do governo no Senado, jurista desmonta narrativa da cúpula da comissão
Em um parecer formulado em resposta a um ofício encaminhado pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), o jurista e advogado Ives Gandra Martins rechaça várias das acusações apresentadas por integrantes da CPI da Covid contra o presidente Jair Bolsonaro por supostos crimes cometidos durante a pandemia de covid-19.
No documento, o senador fez dez perguntas a Ives Gandra relacionadas a imputações criminosas contra Bolsonaro. Como noticiado ontem, o relator da CPI da Covid, Renan Calheiros (MDB-AL), deve apresentar o relatório final do colegiado no dia 19 de outubro. No dia 20, o texto será votado pelos demais componentes da comissão.
O parecer e as respostas de Ives Gandra aos questionamentos de Bezerra Coelho devem servir como fundamento para que os parlamentares da base governista — minoritários na CPI — apresentem um “relatório paralelo”, um texto alternativo ao que será elaborado por Calheiros.
No documento assinado por Ives Gandra, o jurista afirma que Bolsonaro não pode ser acusado pelos crimes como estelionato, corrupção passiva, advocacia administrativa ou improbidade administrativa durante a pandemia.
“Não houve comprovação de recebimento de qualquer vantagem indevida por parte do Presidente da República. Não há comprovação de autoria e nem materialidade do crime no que se refere às condutas do Presidente da República”, escreve o jurista.
“Ademais, as acusações de possíveis irregularidades no âmbito do Ministério da Saúde, elas veementemente rebatidas pelo Presidente da República, que sempre se manifestou no sentido de que deveriam ser investigadas, tanto é que foi instaurado Inquérito policial no dia 30/06/21 em face dos depoimentos dos irmãos Miranda”, prossegue Ives Gandra, referindo-se às acusações do deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e de seu irmão acerca de supostas irregularidades nas negociações do governo para a aquisição de vacinas.
Sem crime de responsabilidade
De acordo com o parecer de Ives Gandra, Bolsonaro também não cometeu crimes de responsabilidade em sua atuação diante da crise sanitária no país — especialmente no que diz respeito ao colapso enfrentado no Estado do Amazonas no início da pandemia. “Não se mostra possível imputar ao Presidente da República qualquer responsabilidade relativa ao colapso na saúde em Manaus, no Estado do Amazonas. O Governo Federal empreendeu esforços, dentro da competência da União, no sentido de conter a pandemia da covid-19”, diz o jurista.
“No tocante a Manaus, foram repassados recursos, foi prestado auxílio no envio do oxigênio, bem como foi enviada equipe do Ministério da Saúde in loco para auxiliar na gestão da crise”, continua Ives Gandra. “Registre-se que os Estados e municípios têm autonomia e competência para adotarem as medidas que entenderem necessárias para conter a pandemia. Não se pode igualmente imputar qualquer responsabilidade ao Presidente da República por não ter decretado intervenção federal no Estado do Amazonas em face da crise de insuficiência de oxigênio que hipoteticamente se daria com base no Art. 34, inc. VII, alínea b da CF/88: ‘Assegurar a observância dos direitos da pessoa humana’. Nesse caso, cabe exclusivamente ao Procurador-Geral da República representar e ao Supremo Tribunal Federal dar provimento autorizando a intervenção federal, e não ao Presidente da República.”
Papel restrito da União
Em seu parecer, o jurista destaca que, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), o escopo de atuação do governo federal durante a pandemia ficou limitado, cabendo a Estados e municípios total autonomia para a definição de políticas públicas de enfrentamento do coronavírus.
“O papel da União no combate à epidemia ficou bastante reduzido, pois ficou consignado que a competência seria concorrente, e que os Estados e os municípios poderiam adotar a forma que desejassem para combatê-la”, afirma Ives Gandra. “Transferiu-se, à evidência, a responsabilidade direta do combate àquelas unidades federativas, passando a ser supletivo o combate pela União, não mais formuladora do ‘planejamento’ e da ‘promoção’ da defesa contra a calamidade pública, mas acolitadora das políticas que cada unidade federativa viesse a adotar na luta contra o flagelo.”
Quem pode denunciar o presidente
Ives Gandra também ressalta que não cabe à CPI da Covid, mas unicamente ao Ministério Público Federal (MPF), a eventual apresentação de denúncia contra o presidente da República por crimes comuns. “Compete privativamente ao Ministério Público, no caso, o Procurador-Geral da República, promover a acusação do Presidente da República pelo cometimento de infração penal comum, cujo julgamento será feito pelo Supremo Tribunal Federal, em face do disposto no Art. 129, inc. I, da Constituição Federal de 1988”, aponta.
Participar de evento público não é crime
Respondendo a outros questionamentos do líder do governo no Senado, o jurista afirma que, ao contrário do que alega a cúpula da CPI, a simples participação de Bolsonaro em eventos públicos não configura uma ação criminosa.
“A participação do Presidente da República em eventos públicos não configura a prática de crime previsto no Art. 263 do Código Penal, consistente em expor a vida e a saúde de outrem a perigo direto e iminente. Em nenhuma dessas ocasiões se mostra possível identificar o elemento dolo na conduta do Presidente da República, nem o viés de promover reuniões com o objetivo precípuo de colocar em risco a vida e a saúde de outrem”, afirma. “Igualmente, não se pode inferir se as pessoas que se encontravam nos eventos públicos já estavam imunizadas, vacinadas ou testaram negativo para o exame da covid-19. De outra parte, o tipo penal previsto, a despeito de mencionar qualquer pessoa, exige que haja uma vítima determinada, o que é impossível nessa hipótese.”
Tratamento precoce e autonomia médica
No parecer, Ives Gandra também refuta a acusação de que Bolsonaro teria cometido o crime de “exercício ilegal da medicina” ao defender, por exemplo, o tratamento precoce contra a covid-19. “Pelo contrário, todas as manifestações e atitudes do Presidente da República se pautaram em estudos científicos, no Parecer nº 04/2020 do Conselho Federal de Medicina e no princípio da autonomia do médico, para no caso concreto, prescrever o medicamento que entender mais eficaz, desde que com a anuência do paciente”, diz o jurista.
Negligência
Outra acusação feita por integrantes da CPI ao governo — de negligência ao supostamente ter demorado para comprar as vacinas da Pfizer — não se sustenta juridicamente, segundo Ives Gandra Martins. De acordo com o jurista, “não houve negligência, mas, sim, o necessário cuidado em face da legislação sobre licitações e contratações então vigente”. “Cabe lembrar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, em sua redação atual, determina que se levem em consideração as consequências práticas da decisão e especial cuidado com peculiaridades do caso”, afirma.
“Na verdade, o suporte legal para a contratação surgiu apenas com a promulgação da Lei nº 14.125, de 10/03/21, que estabeleceu medidas excepcionais para a aquisição de vacinas, entre as quais o pagamento antecipado e a não imposição de penalidades ao fornecedor”, finaliza o jurista.
Além de Ives Gandra, assinam o parecer Adilson Abreu Dallari, Samantha Meyer Marques e Dirceo Torrecillas Ramos.