Foram 38 anos sofrendo abusos pelo pai, até que ela contratou pistoleiros para matá-lo
O relato de Severina mostra as dificuldades que enfrentou vivendo ao lado de um pai violento e abusivo, sendo, inclusive, incentivado pela mãe a cometer os crimes.
Em 2005, Severina Marina da Silva pagou R$ 800 para que dois pistoleiros matassem seu pai Severino Pedro de Andrade. A motivação estava na quantidade de abusos físicos, mentais, sexuais e emocionais por que passou por toda a vida com ele, sendo forçada a trabalhar desde os 6 anos de idade e a manter relações íntimas com o genitor, que culminaram no nascimento de 12 crianças.
Nascida em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, em 1967, Severina narra uma história de privações e violência, sendo tão controlada pelo pai que nunca teve oportunidade de viver a própria vida, de estudar ou mesmo ter amigas.
Foram 38 anos existindo em uma espécie de cárcere, onde inclusive sua mãe compactuava com os sucessivos abusos que sofria, provavelmente por também não ter instrução ou quem sabe medo do marido.
Sem nunca poder sair de casa, a não ser para trabalhar na roça, Severina começou a batalhar aos 6 anos de idade e, aos 9, enquanto seguia para mais um dia de trabalho, seu pai a surpreendeu, amarrando-a para tentar cometer o primeiro estupro.
Tentando se defender, Severina chutou o nariz dele, que imediatamente pegou uma faca, tentando machucá-la. Ele não conseguiu o que queria naquele momento, e ela contou tudo para a mãe assim que voltou para casa.
A genitora não acreditou na filha e a puniu fisicamente, também deixando-a sem almoçar naquele dia. Durante a noite, a mãe foi até o quarto de Severina e a buscou para que o pai cometesse o primeiro abuso sexual. Sem conseguir andar no dia seguinte e com muito ressentimento da mãe, ela disse que o que os dois tinham feito era pecado, mas a mulher apenas explicou que “as filhas tinham que ser mulheres do pai”. Depois daquele dia, três vezes por semana ele estuprava a própria filha na cama do casal.
Assim que completou 15 anos, engravidou pela primeira vez, mas o bebê nasceu morto. Foram 12 gestações do pai, mas apenas cinco filhos conseguiram sobreviver. Mesmo grávida, ela conta em relato no tribunal e em inúmeros momentos na mídia que continuava sofrendo abusos e todo tipo de agressões. Os vizinhos e familiares sabiam tudo o que acontecia e mesmo assim não intervieram na situação, permitindo que as torturas continuassem.
Sem ter amigas, namorados ou sequer algum tipo de vida social, Severina viveu em cárcere privado por 38 anos, e mesmo tentando denunciar o pai inúmeras vezes, nunca era ouvida nas delegacias. Em uma das tentativas, levou um tapa no rosto do delegado de plantão, que a mandou voltar para casa. Algum tempo depois, ela descobriu que o pai tinha dado um dos carneiros que criava ao oficial para que fizesse um churrasco, e assim o caso foi encerrado.
Um dia sua irmã mais nova acabou se interessando por um rapaz da comunidade, mas o pai tentou cometer um estupro contra ela, dizendo que já tinham um “touro” dentro de casa. Severina pediu que a mãe levasse a irmã o mais longe que pudesse, e todas acabaram indo morar na casa do avô, eram oito filhas no total.
Como já estava grávida do terceiro filho, Severina acabou ficando para trás, precisando morar apenas ela, as crianças e o pai naquela casa. Ela tinha 21 anos à época, e o genitor a espancava muito, fazendo com que fosse perdendo cada vez mais a vontade de viver. Foram inúmeras as tentativas de suicídio.
Quando sua filha completou 11 anos, Severino disse que queria começar o ciclo de abusos sexuais com ela, e que se Severina o impedisse, acabaria morta. Ela nunca permitiria que aquilo acontecesse, e jurou que acabaria com a vida dele se um dia isso acontecesse. Foram três dias seguidos de espancamentos, chegando a perder a audição em uma das sessões de tortura.
No dia seguinte, o pai amolou a faca antes de sair para trabalhar e disse que, caso ela não permitisse que mantivesse relações íntimas com a filha-neta, iria matá-la. Assim que ele saiu, Severina decidiu pagar R$ 800 para que dois homens da região acabassem com a vida do genitor, encerrando os anos de abuso e sofrimento.
Em novembro de 2005, enquanto voltava para casa do trabalho, Severino foi assassinado com a mesma faca com que tanto ameaçou a própria filha. Severina afirma que nunca sentiu nenhum tipo de arrependimento e que quem é realmente pai e mãe sabe muito bem quão doloroso é ver um filho sofrer.
Assim que o enterro do pai acabou, Severina foi presa; a própria mãe e uma de suas irmãs a denunciaram. Em 2006, com a implementação da Lei Maria da Penha, ela conseguiu cumprir a pena em liberdade provisória, e voltou a viver com os cinco filhos. Passou cerca de um ano presa.
Severina ainda enfrentou muito preconceito e quase não encontrava oportunidades de emprego por ser ex-presidiária, passando necessidades constantemente. Foi apenas em 2011 que conseguiu receber ajuda do Centro de Referência da Mulher Maria Bonita, de Caruaru, que acolhe mulheres em situação de violência.
Em agosto daquele ano, a pernambucana foi absolvida no júri popular por unanimidade em Recife, sendo que até a promotoria pediu que ela fosse liberada o quanto antes. A defesa alegou que ela tinha apenas se defendido, passando por violência de gênero e com omissão do Estado, já que viveu em cárcere privado por 38 anos. A justiça determinou que ter encomendado a morte do próprio pai era sua única maneira de garantir que ficasse viva, bem como seus cinco filhos.
No início da pandemia de covid-19, Severina e outras mulheres criaram o coletivo “Marias também têm força”, com o objetivo de levar o máximo de informação para mulheres vítimas de violência no âmbito familiar. Ela deseja que agora sua história sirva de exemplo para outras vítimas, além de conscientizar a população de que os pais não são proprietários dos corpos de seus filhos.