“Round 6” (como foi batizada no Brasil a série “Squid Game” — criada por Hwang Dong-hyuk e disponibilizada na Netflix) tornou-se uma das séries mais assistidas da história da plataforma, consolidando o sucesso das produções cinematográficas da Coreia do Sul — já premiada com o Oscar de melhor filme por “Parasita”. O enredo dramático, ágil, envolvente tocou o público justamente por encenar os dramas das sociedades contemporâneas. A primeira temporada disponível na Netflix tem nove episódios: Batatinha Frita 1, 2, 3; Inferno; O Homem do Guarda-Chuva; Fiquem Juntos; Um Mundo Justo; Gganbu; VIP’s; O Líder; e Um Dia de Sorte.
Ela narra a saga de 456 jogadores capturados por um clã de anônimos e bilionários apostadores que usam de sujeitos encapuzados de roupa vermelha e símbolos trigonométricos para gerenciar um jogo de seis rounds no qual o vencedor ganha um prémio de R$ 45, 6 bilhões de wons (moeda sul-coreana). Tem como personagem principal Seong Gi-hun, morador do bairro de Ssangmun-dong, inscrito como personagem 456.
O capital e a economia da dívida
E escravidão não foi abolida no Ocidente com a emergência do liberalismo a partir dos séculos 18 e 19. Ele apenas transformou o modo pelo qual a escravidão é produzida e gerenciada. Se antes o corpo-escravo era a mercadoria a ser posta em comércio e convertida em moeda, hoje o corpo escravo é produzido pela monetarização, sem necessidade de se converter em mercadoria.
As abolições da escravatura apenas retiram o caráter mercadológico do corpo, porém a escravização continua sobre um signo historicamente bastante antigo: a escravidão por dívida.
Diferentemente do mundo antigo, a dívida não mais pode ser abolida e a liberdade reconquistada. Antes ser escravo por dívida era dever a alguém — a partir do momento que a dívida era quitada, a escravidão também cessava. Hoje, a escravidão não pode mais cessar, porque não somos escravos de alguém, somos apenas escravos, sem complemento nominal. A escravidão foi generalizada e tornou-se o modo central de governamentalidade.
É essa tese que derivamos da obra “O Governo do Homem Endividado” do sociólogo italiano Maurizio Lazzarato. Para Lazzarato: “A dívida constitui uma nova técnica de poder”, e produz o “homo oeconomicus neoliberal”. Todavia, o poder da dívida não vem do “exterior, como nas sociedades disciplinares, mas do devedor mesmo”.
Dentro da lógica de governamentalidade neoliberal toda exploração é produzida sobre o signo da liberdade. O capital produz a falsa sensação de liberdade de que é possível a emancipação da miséria da condição humana a partir da acumulação patrimonial. Como aparelho semiótico produz a autoexploração do indivíduo mascarando as estruturas de dominação. O indivíduo, como resultado dessa produção semiótica, acredita-se livre, quando na verdade toda essa “liberdade” não passa de um produto apropriado pelos fluxos do capital.
A escravização pela dívida passa na contemporaneidade a partir da superexposição provocada (e produzida) pelos maquinários tecnoinformáticos (como as redes sociais).
Esse processo de exercício do poder a partir da produção da dívida, de sua gestão e sua exposição é bastante clara no episódio 1 de “Round 6”. Todos os personagens capturados pelo maquinário anônimo do jogo são susceptíveis ao domínio (e a exploração), porque devem. E suas dívidas são exibidas no telão a todos os outros participantes como forma de legitimação à dominação. O telão é um dispositivo normativo que exorta o mandamento implícito: “vocês foram capturados e serão obrigados a jogar porque devem” — eis a gestão da psicopolítica dos afetos: da culpa e da vergonha individual e coletiva.
Fora da série de streaming esses processos de culpa e de vergonha são produzidos pelas redes sociais (com a necessidade de superexposição de si), pelas relações sociais (pela indução à competividade) pelas estruturas jurídicas (pela exposição vexatórias produzida pelos sistemas judiciários).
A economia da dívida é assim a produção e gestão não apenas do crédito (e das economias políticas), mas é a produção de certo tipo de subjetividade suscetível a dominação por meio da interiorização da exploração e a dissimulação dos jogos poder.
Mas toda essa gestão psíquica da culpa e da vergonha não teria sentido sem uma “ilusão” ou um “feitiço”: de que a liberdade é possível. Esse feitiço na série da Netflix é performado a partir de um porco gigante e com bilhões de wons colocados sobre a cabeças dos 456 participantes. É a indução do sistema límbico da recompensa — formado desde a infância — hiperbolizado. O capital produz seus simulacros de encantamento (sem encantar).
“Round 6” encena assim de uma maneira lúdica a economia da dívida. (afinal o homo oeconomicus é também um homo ludens).
O jogo como simulacro da lógica de guerra permanente
Johan Huiziga afirma no seu “Homo Ludens” que o jogo é um elemento da cultura, porquanto “tem algo que transcende a própria vida”. Todavia, os jogos mais do que elementos da cultura, eles são elementos do exercício do poder.
Nas sociedades contemporâneas, os jogos são manifestações da máquina de guerra produzida pelo capital, como descrevem Deleuze e Guattari. O jogo é o exercício lúdico e dissimulado da guerra, que revela um mecanismo de disputa de todos contra todos.
E como máquina de guerra, a morte é apenas parte do sistema. Matar não é algo imoral, é apenas parte do jogo. E dentro da máquina de guerra neoliberal, a morte é rentabilizada, como um espólio da guerra e que retroalimenta o sistema. Eis o processo explícito de “Round 6”.
A máquina de guerra que não é propriamente estatal, porquanto é rizomática, espalhando-se difusamente pelo tecido social; não é a continuidade da política, mas, ao contrário, ela produz a política. Ela atravessa todo o tecido social e os jogos são manifestações dessa competividade bélica imanente.
Esse elo entre jogo e guerra é explorado em “Round 6” por meio da perversão do ludismo. O lúdico dissimula a violência. O poder de vida e morte decorre do jogar com (a) infância. Eis aí a perversão do poder e a perversidade da moral.
Em outro sentido, a série encena o jogo cínico entre paz, liberdade e democracia. Há a regra 3 no qual os participantes podem parar o jogo se a maioria deles (a maioria dos sobreviventes) assim decidir. É o que acontece depois do Round 1. Porém a maioria dos participantes, mesmo “libertada”, retorna ao jogo.
Essa é a lógica das democracias liberais contemporâneas. O voto cria uma falsa sensação de liberdade, na qual os indivíduos podem gerir a política da guerra. Mas as máquinas de guerra, a partir da economia da dívida, forçam os participantes a assumir o jogo do capital. É o capital que dita as regras do jogo — e não há poder democrático que possa resistir a este poder.
A tecno-lógica da exaustão
Byung-Chul Han, filósofo coreano (como a série) e radicado na Alemanha escreveu um livro chamado “A Sociedade do Cansaço” no qual afirma que a enfermidade típica de nossa época é a exaustão, “um tipo de violência neuronal”, a qual os indivíduos estão submetidos. É um adoecimento provocado “por excesso de positividade”, excesso de estímulos.
O indivíduo contemporâneo explora a si mesmo acreditando ser livre. O neoliberalismo é assim uma espécie de “gestão do sofrimento psíquico”. Estar cansado é o modo de ser contemporâneo. E por que nos sentimos tão cansados? O cansaço não é produto do excesso
de trabalho, apenas. É o fechamento do horizonte de esperança. A exaustão é sintoma de que algo que não possui mais saída.
Dessa forma exaustão e endividamento formam um contínuo existencial. A dívida infinita produz a exaustão e condena à impossibilidade de emancipação. A exaustão é a dissolução de todas as energias utópicas. E futuro, se há, para o individuo exausto, só pode ser diatópico. E as séries televisivas têm deixado bastante clara essa mentalidade distópica contemporânea.
Os episódios 8 e 9 (sem spoilers) da série relatam essa exaustão. Mesmo o vencedor não consegue desfrutar da sua vitória porque está exausto. Até mesmo os controladores do jogo não podem mais desfrutar do seu poder, porquanto estão exaustos.
“Round 6” é a atual sociedade tecnoliberal retratada. É a sociedade em que todos perdem, mesmo os supostos vencedores. Lembra-me a velha frase de Machado de Assis: “ao vencedor as batatas”.